terça-feira, 27 de maio de 2008

Mito e Realidade: a linguagem simbólica

A propósito do touro alado de S. Lucas ( da Basílica de Mafra) troquei uns breves comentários com o prof. Artur acerca do significado de símbolo e linguagem simbólica. Como na escola o tempo não é muito para grandes conversas (imaginem como será quando tivermos de preencher 380 mil fichas de avaliação de desempenho!) decidi postar, com alguma calma, uma pequena reflexão sobre a linguagem simbólica na Bíblia.
Para começar, vamos atribuir a cada evangelista o seu símbolo (no sentido dos ponteiros do relógio):
João –
águia

Lucas - touro
Mateus - anjo
Marcos - leão
A origem destes símbolos podemos encontrá-la em textos bíblicos do Antigo Testamento (Ezequiel 1, 5-12) e do Novo Testamento (Apocalipse 4, 6-16) por exemplo. Mais tarde os Padres da Igreja (escritores e teólogos dos primeiros séculos da Igreja) atribuíram aos evangelistas estes símbolos, de acordo com o tipo de linguagem e teologia de cada um.
Entrando agora com mais profundidade no tema, quando se fala de linguagem simbólica na Bíblia é frequente, mesmo entre os alunos, ouvir a pergunta “então isso quer dizer que o que está escrito na Bíblia é mentira?”. Isto vai levar-nos longe, mas vamos apelar para o “poder da Síntese”. Na verdade, as diferentes linguagens humanas (e a linguagem bíblica é também linguagem humana) trazem consigo vários significados, a que recorremos para compreender a realidade que nos rodeia. Por exemplo, se eu quiser dizer em hebraico “esta caneta é minha” terei de dizer “esta caneta existe para mim” porque no hebraico bíblico não existe a noção de posse como nós a entendemos hoje! Capisce? Ou seja, quando utilizamos a linguagem simbólica para falar da realidade que nos cerca não estamos a dizer mentiras, estamos sim a relacionar as coisas com a nossa vivência mais profunda. O termo símbolo (em grego symbolon) deriva do verbo symballéin, que significa “colocar junto” ou “confrontar” e indica uma realidade em que um sinal imediato remete para um sentido figurado ou existencial. Então o símbolo torna-se qualquer coisa que actualiza ou intui uma relação, que dá pleno significado às coisas e as torna “meta-físicas” e intemporais.
Quando falamos do MITO bíblico da Criação as coisas podem complicar-se (e não falo só simbolicamente). Desde logo pela utilização da palavra mito; o mito utiliza essencialmente a linguagem simbólica, que remete para um eterno retorno, para uma actualização dum acto primordial. Por isso não pensem que estou a dizer alguma heresia quando falo de MITO em relação a um determinado texto bíblico, porque com isso não quero dizer mentira ou história da carochinha. Em primeiro lugar, os textos bíblicos da Criação são textos simbólicos por excelência (inserindo-se e diferenciando-se, ao mesmo tempo, dos conceitos de criação do antigo Médio Oriente expressos, por exemplo, na Epopeia de Atra-Hasis ou Gilgamesh); em segundo lugar, isso quer dizer que não estão a narrar uma história factual ou científica, mas a afirmar, com uma linguagem própria, que tudo depende radicalmente de Deus, o que é uma coisa muito diferente. Dito de outra forma, “a CRIAÇÃO é um facto meta-científico: não tem significado para a ciência e dele não resulta nada que enriqueça a ciência como tal. Afirmar a criação é uma atitude correcta do ponto de vista filosófico e cheia de sentido religioso”. Ou seja, não se deve confundir cosmologia com criação (aliás, já S. Tomás no século XIII fazia esta distinção).
Um outro exemplo espectacular e largamente difundido pelo cinema é o da travessia do Mar Vermelho. Desde os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille até ao Príncipe do Egipto da DreamWorks que admiramos o esplendor e espectacularidade da abertura das águas, formando duas paredes colossais, para deixar passar os Hebreus. Coisa fantástica, sem dúvida, mas voltemos à realidade: não será este um episódio simbólico? Parece-me que sim. Isso significa mentira? Parece-me que não. Tentativa de explicação: na Bíblia o Mar significa frequentemente o lugar da hostilidade, do abismo e dos monstros marinhos, numa palavra, do mal. Ora abrir o mar significa que este é submisso a Deus; que Deus o pode secar para fazer passar Israel através dele e assim retirar ao mal o seu poder sobre os homens. E isto (linguagem simbólica) vale para tantos outros episódios que tão bem conhecemos, mas nem sempre interpretamos correctamente: a Árvore do conhecimento do Bem e do Mal, o Dilúvio, Caim e Abel, Torre de Babel, alguns milagres de Jesus, etc.
Conclusão: na experiência religiosa, o símbolo é uma forma privilegiada de conhecimento e experiência daquilo que não se pode expressar adequadamente por outras formas de aproximação.
E tudo isto a propósito do touro alado de S. Lucas. Há coisas transcendentes, irmão Artur, não há?!
Digam lá agora que não é uma coisa VERDADEIRAMENTE bonita isto da linguagem simbólica!!!

Para saber mais podem consultar:
Cristhos, Enciclopédia do Cristianismo (Verbo).
AA.VV., As origens do universo, da vida, do homem (UCP).
Jean CHEVALIER/A. GHEERBRANT, Dictionnaire des symboles (Robert Laffont/Jupiter).
(Imagem desviada da Internet: tetramorfo dos evangelistas)

3 comentários:

Artur Coelho disse...

Brilhante post! Cá por mim não sou muito de transcendêntalismos, excepção feita a whitman. Mas simbologia é sempre fascinante. Tenho um livrinho clássico sobre esse assunto. Tenho de to mostrar.

José A. Vaz disse...

desde que não seja o "código da vinci" é bem-vindo (just kidding). estou curioso e cheio de vontade de aprender coisas novas sobre o assunto. acresce ainda que um artista tem sempre de se confrontar com o transcendente (não confundir com transcendental)e um prof. de EVT tem necessariamente de ter algo de artista, logo...

Artur Coelho disse...

Uma lisonja... enfim, o livro é um texto clássico dos anos 50, christian symbology in art, que detalha com muita minúcia todos os pormenores simbólicos da pintura religiosa.

PS: o ^ no transcendental foi uma idiotice do smartphone. Afinal eles ainda não são assim tão espertos.